Rathenau aponta o dedo à ineficiência e à falta de ação das autoridades locais, sobretudo das autarquias. «As Câmaras Municipais, por um lado, atuam de forma excessivamente lenta nos processos de licenciamento de projetos de construção e, por outro, permitem a proliferação descontrolada de milhares de construções ilegais. O resultado é um desenvolvimento imobiliário marcado pela desordem, lembrando o Velho Oeste, onde prevalece a lógica do salve-se quem puder, sem qualquer controle eficaz», afirma.
barlavento: quando fala em «Faroeste urbanístico», o que quer dizer?
Alexander Rathenau: No Algarve, especialmente no Barlavento Algarvio, há vários anos que se verifica uma construção ilegal em larga escala, frequentemente acompanhada por movimentações de terras e destruição da vegetação, levando, por vezes, à obstrução de caminhos públicos. Nos concelhos de Lagos, Vila do Bispo e Aljezur, que conheço bem, existem milhares de construções ilegais – e novas surgem todos os dias. Uma prática comum é a instalação de casas pré-fabricadas no meio da paisagem, além de centenas de barracas, caravanas e outras habitações improvisadas ou precárias. Este é um problema grave, pois leva à destruição progressiva da natureza, particularmente em áreas sensíveis como as zonas classificadas de Reserva Agrícola Nacional (RAN), Reserva Ecológica Nacional (REN) e Parque Natural da Costa Vicentina e do Sudoeste Alentejano.
Apesar disso, o número de construções ilegais continua a crescer sem controlo efetivo há anos. Na verdade, muitas pessoas que constroem à margem da lei dispõem de recursos financeiros suficientes para adquirir uma habitação devidamente licenciada. Optam por não o fazer por diversas razões e há vários fatores contribuem para este fenómeno.
É relevante destacar que a legislação urbanística se aplica à construção modular de caráter permanente, caracterizada pelo uso de elementos ou sistemas construtivos modulares, sejam estruturais ou não estruturais, parcial ou totalmente fabricados em unidade industrial, e posteriormente montados no local de implantação, independentemente de serem amovíveis ou transportáveis.
Como se explica que o número deste tipo de construções ilegais continue a aumentar?
As Câmaras Municipais, que deveriam atuar como principais entidades fiscalizadoras, não intervêm ou o fazem de forma eficaz. Tornou-se amplamente conhecido, também entre estrangeiros, que a construção ilegal na região raramente traz consequências. Mesmo quando há ordens de demolição, estas praticamente nunca são executadas. Quando alguém vê que o vizinho constrói sem licença e não enfrenta problemas, considera injusto seguir as regras e acaba por fazer o mesmo. Muitas pessoas que herdam terrenos não edificáveis constroem ilegalmente com o objetivo de os vender posteriormente a preços inflacionados, muitas vezes com a conivência de agentes imobiliários.
Além disso, há quem justifique as suas construções ilegais no meio do campo com o desejo de criar os filhos em contacto com a natureza. No entanto, considero isso uma contradição, pois acabam por degradar o próprio ambiente que dizem querer preservar.
E que dizer sobre as chamadas casas móveis, cujo negócio tem vindo a crescer?
Considero inaceitável que o legislador ainda não tenha adotado medidas eficazes para impedir a comercialização massiva de construções móveis. Os vendedores de estruturas pré-fabricadas e a respetiva publicidade estão a aumentar devido ao crescimento da procura. A venda destas estruturas deveria ser interditada sem a apresentação de um título urbanístico que legitime a respetiva construção. Um empresário que realize uma venda sem este controlo prévio deverá ser solidariamente responsável pelos custos que a Câmara Municipal vier a suportar para a remoção da estrutura clandestina. Atualmente, exige-se um projeto aprovado para requerer a ligação elétrica, enquanto a instalação de um edifício ilegal pode ocorrer sem qualquer controlo. Esta situação é insustentável e não pode persistir.
Por que motivo diz que as câmaras municipais não atuam?
Por várias razões. Os presidentes de Câmara, eleitos pelo voto popular, evitam adotar medidas impopulares, como a demolição de construções ilegais, para não comprometerem a imagem do seu partido ou as suas próprias hipóteses de reeleição – mesmo quando a lei os obriga a agir. Mais preocupante ainda é o facto de a maioria das autarquias apenas intervir perante uma construção ilegal quando existe uma denúncia formal por parte de alguém, por exemplo, um vizinho, comprometendo assim o próprio Estado de Direito.
Além disso, muitas Câmaras Municipais não dispõem de recursos financeiros suficientes – ou simplesmente optam por não alocar verbas no orçamento – para proceder à demolição das de construções ilegais.
Significa que as autarquias devem promover demolições?
As autarquias têm o dever legal de promover a demolição de construções ilegais quando estas não cumprem as normas urbanísticas e não podem ser legalizadas. A legislação prevê que, caso o proprietário não proceda voluntariamente à demolição dentro do prazo estabelecido, a Câmara Municipal deve avançar com a execução coerciva, assumindo a posse administrativa do imóvel e realizando os trabalhos necessários à remoção da construção irregular. Os custos dessa intervenção, incluindo eventuais indemnizações ou despesas de realojamento, são da responsabilidade do infrator e podem ser cobrados através de execução fiscal ou, em certos casos, por arrendamento forçado do imóvel.
No entanto, o princípio da igualdade no direito administrativo impõe que casos semelhantes sejam tratados de forma idêntica, o que cria um problema prático para as autarquias. Se uma Câmara Municipal decidir demolir uma construção ilegal, deveria, em teoria, aplicar essa mesma medida a todas as outras infrações semelhantes.
Contudo, dada a dimensão do problema, com milhares – ou até centenas de milhares – de construções ilegais apenas no Algarve, torna-se inviável aplicar este princípio de forma uniforme. Isso levanta questões sobre a seletividade na fiscalização e execução das demolições, podendo gerar percepções de injustiça entre os cidadãos e dificuldades políticas para as autarquias na gestão destas situações.
É possível, também, que em certos casos, o poder local fechar os olhos?
Recebo com regularidade informações confidenciais sobre casos de corrupção que comprometem o funcionamento do Estado de Direito. Em algumas situações, construções ilegais são intencionalmente toleradas ou até incentivadas, motivadas por interesses financeiros ou pessoais. Em suma, todos estes fatores explicam por que razão a atividade ilegal na construção continua a proliferar e por que a aplicação efetiva das normas urbanísticas raramente se verifica.
Dado que as Câmaras Municipais, apesar de serem legalmente obrigadas, não cumprem eficazmente a sua função de fiscalização, poderia ser criada uma entidade independente para assumir essa responsabilidade. A legislação já concede às autarquias todos os poderes necessários: podem tomar posse de construções ilegais, proceder à sua demolição e exigir o reembolso das despesas aos responsáveis, como já referi.
Enquanto não fizerem uso desses mecanismos, a construção ilegal continuará impune. As multas aplicadas, além de esporádicas, são demasiado baixas para terem um efeito verdadeiramente dissuasor. Se as Câmaras iniciassem a demolição de habitações ilegais, isso teria um efeito exemplar e desencorajaria novas infrações. Mas a realidade demonstra que dificilmente agirão sem uma pressão externa.
Ainda assim, creio, a solução mais adequada para a defesa do Estado de Direito seria que as autarquias assumissem as suas responsabilidades, sem necessidade de um órgão fiscalizador externo. A criação de tal entidade levantaria questões de ordem constitucional, dado que as autarquias beneficiam de ampla autonomia administrativa. Contudo, ao continuarem a tolerar de forma sistemática a violação das normas urbanísticas, acabam por comprometer a legitimidade dessa proteção institucional.
E aos proprietários, por que não são responsabilizados?
Como referi, na prática, as Câmaras Municipais aplicam coimas de valor reduzido, que não têm um efeito dissuasor significativo. Como consequência, estas sanções não impedem que outras pessoas continuem a recorrer a construções clandestinas, perpetuando a ilegalidade e a degradação do ordenamento urbanístico.
O incumprimento de uma ordem de demolição por parte do infrator até pode, em certos casos, configurar um crime de desobediência. A legislação estabelece que o desrespeito de atos administrativos que imponham medidas de tutela da legalidade urbanística constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º do Código Penal. No entanto, as Câmaras Municipais raramente encaminham estes processos para o Ministério Público, impedindo assim que sejam instaurados procedimentos criminais contra os responsáveis.
Além disso, nos processos criminais que acompanhei enquanto advogado, as penas aplicadas resumiram-se, na maioria dos casos, a multas de baixo valor, sem que as construções ilegais tenham sido efetivamente demolidas pelos condenados. Uma demonstração clara das fragilidades do Estado de Direito.
Na prática, que medidas poderiam combater, de forma eficaz, a construção clandestina?
Um outro aspeto fundamental que o legislador deve considerar, caso decida implementar medidas para combater a construção clandestina, é a criação de um mecanismo eficaz para responsabilizar aqueles que executam trabalhos de empreitada no âmbito da construção ilegal.
Isto inclui empresas que realizam movimentos de terra não autorizados, erguem edifícios sem controlo prévio, entre outras infrações. Essas empresas devem, pelo menos, ser responsabilizadas, tal como o proprietário do imóvel, pelos custos de demolição das construções irregulares e, na minha opinião, devem estar sujeitas ao pagamento de coimas elevadas.
Além disso, a lei deveria prever expressamente que os mediadores imobiliários sejam responsabilizados pelos danos financeiros sofridos pelos compradores que adquiram imóveis clandestinos ou semiclandestinos, salvo se conseguirem demonstrar, de forma inequívoca, que o comprador tinha pleno conhecimento da irregularidade urbanística do imóvel.
Aliás, no exercício da minha atividade como advogado, se, no âmbito de um mandato de compra e venda de um prédio urbano, não verificar a legalidade urbanística do mesmo e o meu cliente sofrer prejuízos decorrentes dessa omissão, este poderá invocar o incumprimento do contrato de mandato e exigir-me a devida indemnização.
Qual a sua opinião sobre a polémica lei dos solos?
Considero que a lei dos solos é uma boa ferramenta para facilitar a criação de solo urbano por parte das autarquias. No entanto, existe muita desinformação em torno desta legislação, o que leva, de forma errada, à percepção de que as Câmaras Municipais passaram a ter um poder arbitrário para converter terrenos agrícolas em áreas urbanizáveis.
Uma das mudanças mais relevantes introduzidas por esta lei é a possibilidade de reclassificar terrenos agrícolas adjacentes a zonas urbanas para fins habitacionais, desde que cumpram determinados critérios. O principal objetivo é facilitar o desenvolvimento de novos bairros residenciais e garantir um crescimento urbano mais equilibrado, sem comprometer áreas ecológicas sensíveis. Importa sublinhar que os terrenos incluídos na RAN ou na REN continuam protegidos, assegurando-se a preservação das suas funções ambientais e evitando impactos negativos nos ecossistemas.
Considera então, que foram ultimamente foram introduzidas algumas melhorias no âmbito do direito do urbanístico?
Nos últimos meses, o legislador implementou algumas medidas positivas, mas também uma que considero extremamente negativa. Atualmente, a utilização de um novo edifício já não depende da emissão de uma licença de utilização, sendo suficiente que o arquiteto responsável ateste a conformidade da obra com o projeto aprovado. Uma boa medida. Adicionalmente, foram estabelecidos prazos específicos para a apreciação dos pedidos de licenciamento pelas autarquias.
Desde 4 de março de 2024, as Câmaras Municipais são obrigadas a pronunciar-se dentro de prazos concretos: 120 dias para projetos com área bruta de construção até 300 metros quadrados (m²) e 150 dias para edifícios entre 300 m² e 2.200 m², bem como para imóveis classificados. Se não houver resposta dentro desses prazos, o projeto considera-se automaticamente aprovado. Esta nova abordagem pretende acelerar os processos e reduzir a burocracia. Trata-se também de uma boa medida. Acresce que a cada vez maior digitalização dos procedimentos pode acelerar a aprovação de projetos habitacionais, tornando a construção mais eficiente.
No entanto, ainda há falhas na recente legislação…
Uma falha grave na legislação foi a eliminação da obrigatoriedade de comprovar a legalidade de um imóvel antes da sua venda. Essa alteração permitiu que milhares de construções ilegais entrassem no mercado imobiliário, sendo adquiridas por compradores desinformados, que acabam por enfrentar elevados prejuízos financeiros. Essa é uma medida profundamente inadequada.
Não é razoável que as autarquias pouco façam para combater a construção clandestina, enquanto o legislador nacional acaba por beneficiar quem construiu ilegalmente, ao permitir a venda destas propriedades sem qualquer restrição. Medidas como esta enfraquecem a confiança no Estado de Direito e incentivam a proliferação de construções irregulares. Os agentes imobiliários aproveitam essa lacuna para comercializar terrenos com edificações ilegais, omitindo aos compradores que essas construções não podem ser legalmente utilizadas e que estão sujeitas a ordens de demolição a qualquer momento.
Há muitas regras urbanísticas que são verdadeiramente caricatas e difíceis de justificar, sobretudo quando se tem em conta a existência de milhares de construções ilegais. Um exemplo disso é a exigência de um plano paisagístico para um edifício devidamente licenciado, enquanto a Câmara Municipal pouco faz para conter a proliferação de edificações clandestinas. Parece desproporcional dar tanta importância à jardinagem quando há problemas urbanísticos muito mais urgentes por resolver. No entanto, considero que o principal entrave continua a ser a morosidade das autarquias na tramitação dos processos urbanísticos, mesmo após a entrada em vigor do chamado simplex urbanístico.
Que recomenda para impulsionar a economia portuguesa e o sector da habitação?
Portugal deveria considerar uma combinação de estímulos à economia e ajustes fiscais estratégicos. Uma das opções seria a redução progressiva do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), de modo a aliviar as empresas e atrair investimentos. O governo português já anunciou a intenção de reduzir a taxa atual de 20%. Se o Continente adotasse a mesma taxa reduzida de 15% – semelhante aos 14,7% já aplicados na Madeira e nos Açores –, isso transmitiria um sinal positivo aos investidores internacionais.
Para as grandes empresas com rendimentos muito elevados, poderiam ser estabelecidas taxas mais elevadas, garantindo um equilíbrio entre competitividade fiscal e justiça tributária. Além disso, benefícios fiscais e apoios financeiros para start-ups e pequenas empresas poderiam dinamizar a economia e, a longo prazo, aumentar a arrecadação fiscal.
O novo regime fiscal para residentes não habituais, o chamado RNH 2.0, revela-se pouco atrativo, uma vez que restringe os benefícios fiscais a um número limitado de profissões e apenas quando exercidas em empresas com características específicas. O legislador deveria reconsiderar o programa e torná-lo mais inclusivo. Um regime mais abrangente, que ofereça incentivos fiscais a um leque mais amplo de profissionais – independentemente da empresa em que trabalham ou se exercem atividade como independentes –, contribuiria para atrair talentos qualificados para Portugal.
É essencial implementar políticas mais competitivas a nível internacional, capazes de alcançar reconhecimento global, como sucedeu com o Estatuto de Residente Não Habitual de 2009, que, antes da sua extinção, atraiu milhares de estrangeiros para Portugal. Tal como esse regime beneficiou os reformados, no futuro, medidas semelhantes deveriam ser direcionadas para investidores e empresários.
E em relação a quem escolhe Portugal para gozar a reforma?
Os reformados que optam por se mudar para Portugal deveriam voltar a beneficiar deste estatuto, uma vez que foram eles que trouxeram um volume significativo de capital para o país nos últimos 15 anos. É importante sublinhar que a presença destes reformados, ao adquirirem ou arrendarem habitações, não foi responsável pela escassez de habitação a preços acessíveis em Portugal, como alguns políticos dizem.
Como avalia os benefícios fiscais existentes para investidores?
Penso que o legislador deveria reconsiderar certas isenções fiscais que não têm produzido os resultados esperados, direcionando esses recursos para políticas mais eficazes e sustentáveis. De facto, todo o Estatuto de Benefícios Fiscais deveria ser sujeito a uma revisão minuciosa.
É igualmente essencial modernizar os sistemas de arrecadação fiscal e reforçar o combate à evasão fiscal. O recurso a tecnologias como a Inteligência Artificial poderia tornar a cobrança de impostos mais eficiente e dificultar práticas de sonegação. Campanhas de sensibilização, associadas a uma maior transparência nos processos administrativos, seriam fundamentais para fortalecer a confiança dos cidadãos no sistema tributário e promover um maior cumprimento das obrigações fiscais. É, por exemplo, difícil de compreender que alguém que se registe como residente fiscal em Portugal não seja automaticamente notificado pela Autoridade Tributária para apresentar a sua declaração de IRS. Muitos dos meus clientes possuem residência fiscal em Portugal, mas nunca receberam qualquer comunicação das autoridades fiscais para cumprirem essa obrigação, apesar de esta estar expressamente prevista na legislação fiscal em vigor.
Evasão fiscal, desconfiança e populismo
Para Alexander Rathenau, «em Portugal, persiste uma cultura profundamente enraizada de evasão fiscal, muitas vezes sustentada por práticas ilegais. Um exemplo comum é a recusa de muitos senhorios em formalizar contratos de arrendamento, com o objetivo de evitar a declaração dos rendimentos à Autoridade Tributária. Este tipo de comportamento está, em grande medida, associado à desconfiança na classe política, alimentada por sucessivos escândalos de corrupção que abalaram a credibilidade das instituições».
O partido Chega, diz o advogado, «tem explorado este descontentamento, promovendo a percepção de que toda a elite política é corrupta, fomentando o medo e desacreditando as instituições democráticas. Chega a defender uma limpeza de Portugal, uma retórica alarmante que evoca discursos totalitários do passado. Essa abordagem não só mina a confiança no sistema democrático, como também enfraquece o Estado de Direito, afastando soluções construtivas e promovendo divisões sociais em vez de respostas eficazes aos problemas estruturais do país».
Pelo contrário, recomenda, «o que realmente se impõe é um esforço para esclarecer a população de que a ampla maioria dos políticos não está envolvida em práticas corruptas, que a dedicação ao serviço público merece reconhecimento e que muitos destes profissionais poderiam, inclusive, auferir rendimentos significativamente mais elevados fora da política».
Talvez menos debatido, mas também determinante para solucionar a crise de habitação, seria uma revisão do Direito das Sucessões, opina ainda o advogado luso-alemão Alexander Rathenau.
Fonte: https://www.barlavento.pt/algarve-o-faroeste-urbanistico/